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24 de nov. de 2010

A origem: resenha feita por Suzana Herculano-Houzel

"A origem": fatos, ficção e especulação

Faça um filme e todos começarão a lhe explicar o que você queria dizer com cada cena ou nome de personagem. Se for de ficção científica, então, vem a polícia de plantão dizer que "não é assim que funciona".
Eu não sei o que Christopher Nolan queria dizer com A Origem, mas sei o que eu acho que vi: um filme de ação cujo desenrolar exige que os sonhos aconteçam de uma certa maneira, com certas características específicas. A Neurocientista de Plantão se divertiu com a estória; não fico nem um pouco incomodada quando a ciência é transformada claramente em ficção (o que não foi o caso de Quem Somos Nós?, onde um grupo de pseudo-cientistas faziam supostamente um "documentário", mas isso é outra estória). Ao contrário, acho ótimo quando inventam novas regras para o mundo.
Ainda assim, entendo a vontade, e até a necessidade, de saber o que é fato e o que é ficção científica em filmes como A Origem. Afinal, não queremos que ninguém saia do filme achando que aprendeu como os sonhos funcionam, certo?
Então: no filme de Christopher Nolan, sonha-se imediatamente ao se adormecer conectado a uma máquina; o tempo sonhado é estendido em relação ao tempo real; há sonhos, sonhos dentro de sonhos, e outros dentro destes, todos os quais podem ser compartilhados por co-sonhadores, ligados à mesma máquina, e dos quais se acorda com uma "senha" musical e a sensação de queda.
Esses são recursos narrativos que fazem o roteiro funcionar, mas que pouco têm a ver com a realidade. Desde 1953, quando Nathaniel Kleitman e Eugene Aserinsky descobriram a fase do sono chamada de REM (com movimento rápido dos olhos, ou rapid eye movements), sabe-se que os sonhos ricos em imagens e sensações são concentrados nesta fase, e não ocorrem imediatamente ao se adormecer. Ao longo da noite, sonha-se várias vezes, durante fases REM cada vez mais longas, que chegam a durar uma hora antes do despertar. O tempo passado em sono REM, contudo, é apenas proporcional à extensão dos sonhos lembrados: ao contrário do tempo estendido no filme, uma história vivida, lembrada ou sonhada tem a mesma duração. E não deveria ser diferente, já que hoje entendemos os sonhos como reativações de memórias iniciadas durante o dia, um palco de experimentação com o seu banco de dados pessoal.
De fato, estudos de imageamento funcional do cérebro mostram que, durante os sonhos, as regiões de córtex associativo no cérebro, que participam das percepções sensoriais internas, são fortemente ativadas, juntamente com outras estruturas que dão o tom emocional às nossas vivências, de maneira similar a quando se imagina ou lembra de experiências anteriores. Ao contrário, as regiões sensoriais primárias, que recebem informação diretamente dos sentidos, ficam pouco ativas: durante os sonhos, o cérebro dá prioridade a processar informações internas, de maneira quase independente dos sentidos. Por isso, e ao contrário do que se mostra no filme, não é comum que estímulos externos que acontecem durante o sono sejam incorporados aos sonhos.
É possível, claro, sonhar que se estava sonhando. Mas isso ocorre de modo linear, ao longo de um mesmo sonho: até onde se sabe, não há níveis diferentes de sono REM. Existem hoje drogas que facilitam ou dificultam a ocorrência de sono REM, mas não que o induzem diretamente. E, mesmo que exames mostrem quais partes do cérebro estão ativadas durante o sono, não é possível (ainda) saber com o que alguém sonhava. Sonhos são pessoais, privados, e praticamente impenetráveis; a única maneira de interferir no seu conteúdo é através das experiências vividas no estado acordado (eu me preocuparia muito mais, por exemplo, com a "implantação de ideias" na vida acordada, como políticos e marqueteiros em época eleitoral são mestres em fazer).
Não acho que Nolan tenha querido fazer um filme sobre a neurociência dos sonhos. Já Vaughan Bell, em seu blog Mind Hacks, argumenta, em um texto muito interessante (em inglês), que o filme A Origem teria sido inspirado nas teorias de Carl Jung.
E há quem vá ainda mais longe e especule que A Origem tenha sido inspirado não na neurociência nem nas teorias de Jung, mas em uma história... do Tio Patinhas, publicada originalmente na Noruega em 2002. No quadrinho, os Irmãos Metralha, a fim de descobrir a combinação do cofre da Caixa-Forte do quaquilionário muquirana, invadem o sonho deste com a ajuda de uma máquina criada pelo Prof. Pardal. O cientista descobre o plano e recruta Donald e os três sobrinhos para entrar nos sonhos do tio-avô e lá prenderem os bandidos. Soa familiar?
Só para constar: não estou acusando ninguém; acredito em coincidências; e acho que ideias como invasão de sonhos devem ser ainda mais comuns no universo de histórias de ficção científica do que a gente pensa. A mensagem aqui é que, como diz Vaughan Bell no blog citado acima, "Com um martelo na mão, tudo ao redor começa a parecer pregos". Criticar o que já está feito é fácil; difícil é fazer do zero um filme como A Origem.

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