Por outro lado, endoscopia você sabe bem o que é. Se não sabe já ouviu falar. É aquele exame meio chato, em que enfiam um tubo flexível na sua goela (garganta) e vão investigar como está seu esôfago, seu estômago e as porções mais próximas do duodeno. Essa é a endoscopia digestiva alta (EDA). Na verdade, endoscopia vem de endo- (dentro) e -scopia (olhar, espiar). Mas existem outras endoscopias que você vai querer menos ainda fazer: anuscopia (anus), colonoscopia (cólon - aqui o tubo costuma ser rígido...), broncoscopia (dentro do pulmão, pelos brônquios), colposcopia (útero), entre outras mais bizarras. Podemos dizer inclusive que a otoscopia (aquela coisa que o médico faz para olhar seu ouvido com um lanterna com um biquinho) é uma endoscopia do ouvido.
Por similaridade, podemos entender (bem, na verdade eu estou afirmando) que ectoscopia (ecto-, por fora e -scopia, você já sabe) vem de olhar por fora, superficialmente. É aquela espiadela que o médico dá no paciente desde que vem porta a dentro até a saída pela mesma (ou outra) porta. Na verdade, tudo o que o médico pode tirar do paciente pela observação é chamada de ectoscopia.
A forma de andar, o equilíbrio, os movimentos do corpo, o olhar, os gestos, a forma como se arrumou (se demais, se de menos, se não teve cuidado), se está sujo, se tem sangue na roupa, se tem resto de secreção na ponta do nariz, se os dentes estão em bom ou mau estado de conservação, se sua fala é cadenciada, se é entrecotada, se tem deformidades no corpo, se faz esforço para respirar, se está desatento, se parece bêbado, etc.
Antes das críticas, já vou dizendo logo: observamos TUDO! Asseio ou falta dele, nível social, qualidade do português, roupas, sapatos, se é alto, se parece gordo, TUDO. A forma como a mãe segura o filho, a forma como o filho se porta em relação aos pais, se eles se olham, duranta a amamentação. Sinais de ansiedade, sinais de desconcentração. A ectoscopia é uma leitura do corpo e da linguagem corporal com o objetivo a se fazer diagnóstico.
Essas coisas não servem para exercício do preconceito, nem para exercício do cinismo. Mas para nortear as perguntas, para testar as respostas, para somar informações. Por exemplo, muitos pais acham que é mágica quando estão comentando sobre o filho que vem com o nariz entupido, e eles acham que a moça que toma conta dele é descuidada, 'porque ele vive com o nariz entupido.' Aí eu pergunto: 'tem alguém na família com rinite, não é?' Um olha para o outro, e com espanto, 'sim, doutor, eu tenho', diz a mãe. Aí eu falo, 'o pai também, não?'. 'Bem, eu espirro quando tem poeira, mas só de vez em quando'. Para baixar a onda da admiração mística, eu explico que o menino tem pregas de Dennie-Morgan (às vezes tenho que explicar que não é Demi Moore), assim como os pais, e que o pai estava coçando o nariz o tempo todo. Depois de examinar o paciente e esmiuçar a história, muitas vezes fechamos como rinite mesmo e tomamoas as providências.
As pregas de Dennie-Morgan que eu citei são preguinhas na pálpebra inferior de alguns pacientes que geralmente está associada a alergia pele e/ou de respiratória. Então é um sinal claro para quem conhece. O pai coçar o nariz até ficar vermelho, é outro sinal. (Obs: não vale sair por aí falando 'ih, você tem prega de Dennie-Morgan. Você tem dermatite ou rinite?'... só se recomendar o blog!).
Portanto, a ectoscopia é uma parte da consulta que não vem depois da anamnese, mas permeia TODA a consulta, pois estamos observando você o tempo todo (sinistro, não?). Portanto, se o miserável do doutor nem levantou os olhos para olhar pra você e seu filho, pense duas vezes para seguir o que está na receita. Ectoscopia às vezes é mais que a anamnese.
Um outro exemplo de como a ectoscopia pode ajudar, é quando nos chega um paciente com movimentos descoordenados, olhos virados, inconsciente, músculos puxando para um lado e para o outro e babando, com as calças molhadas de urina. Não precisa de história, até segunda ordem, é uma crise convulsiva tônico-clônica. Aí a história refina o entendimento (o que geralmente é 'não sei doutor, estava sentado vendo desenho na TV e começou a ficar assim'). Então examinamos sumariamente o paciente e procedemos com o resgate do paciente.
Aliás, a palavra sinal cai aqui como uma luva. Muitas pessoas não sabem a diferença entre sinal e sintoma.
A anamnese pesca o sintoma. É o relato do paciente. O que ele sente, que eu não sinto. O que ele sente e me precisa ser relatado. Eu só sei se você tem dor de cabeça se você me disser. Senão, no máximo vou achar que você tem dor pela ectoscopia (facies de dor - cara de dor).
Sinal é o peixe da ectoscopia. O que eu saco só de olhar. Muita gente inclui o exame físico como sinônimo de ectoscopia. Mas na verdade, é a observação que acompanha o exame, e como eu disse, TODA a abordagem do paciente. O dicionário Steadman de termos médicos diz que a ectoscopia é um método histórico e obsoleto, por se tratar do diagnóstico das órgãos internos feito a partir da visualização do moviemnto das paredes abdominal e torácica. Na verdade, ele está certo, pois provavelmente se refere ao diagnóstico a olho nu, o método ectoscópico do Dr. Eduard Weisz, uma pérola que eu achei aqui, e que realmente não serve mais pra nada.
Mas a ectoscopia moderna, aliada a uma boa conversa (anamnese) e a métodos diagnósticos adequados (exames), pode ser espetacularmente útil. E não serve só pra médicos. Psicólogos, e outros profissionais, entrevistas de emprego e outras formas de abordar pessoas baseiam-se em alguma forma de ectoscopia. Namorados, sedução. Políticos, enganação. Bandidos, intimidação... Você ficaria impressionado como é antigo o estudo da linguagem corporal.
Eu não quero deixar você desconfortável, mas você nunca estará a salvo perto de um bom ectoscopista. Se o médico é bom observador, você está sempre sendo vigiado... sempre!
Leia também:
Elementos da consulta: anamnese
Um abraço.
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