Relatos históricos são de que esses dois gênios competiam por um espaço comum , que será retratado no seriado Da Vinci's Demons , atualmente no ar pelo canal FOX
(Às terças e quartas)
O ano era 1504. E a cidade de Florença, localizada na Itália, berço
da Renascença, estava em polvorosa com o que se chamou de “a batalha das
batalhas”. A notícia que corria de boca em boca era que o jovem artista
Michelangelo Buonarroti, então com 29 anos, admirado por boa parte da
sociedade da época, tinha aceitado o convite para pintar uma cena de
guerra numa das paredes do Palazzo della Signoria, então sede do governo
florentino. O fato, por si só, não chamaria tanto a atenção se não
fosse por um detalhe: o mesmo convite tinha sido feito, um ano antes, a
outro grande artista, o respeitadíssimo Leonardo Da Vinci, na época com
51 anos. Leonardo aceitara a encomenda e já havia até montado seu
andaime na parede oposta àquela posteriormente oferecida a Michelangelo.
A tarefa dos dois era retratar uma cena de batalha, de livre escolha,
inspirada na história recente de Florença. O trabalho era tão bem pago
que se tornou irrecusável – para um e para outro. Parece que Leonardo
não gostou muito da idéia de ter Michelangelo por perto, mas se sentiu
estimulado com o clima de competição. Logo ele, que tinha fama de
procrastinador, trabalhou com afinco nos desenhos que dariam origem à
sua Batalha de Anghiari. “Estavam em jogo duas visões bastante
diferentes do fazer artístico”, diz o historiador Francisco D’Alambert,
professor da Universidade Estadual Paulista, Unesp. De um lado,
Leonardo, o intelectual que fazia da natureza sua fonte de inspiração e
já tinha escrito um tratado sobre a pintura. Do outro, Michelangelo, o
escultor que imprimia às figuras de seus afrescos o mesmo vigor de suas
obras no mármore. Ambos, como bons renascentistas, almejavam a
perfeição. E ambos, como bons rivais, não se topavam.
Pense nesse confronto como se os físicos Isaac Newton e Albert
Einstein tivessem vivido na mesma época, na mesma cidade, e a prefeitura
tivesse chamado ambos a medir forças realizando o mesmo teste de
matemática. É claro que Florença se tornou pequena demais para dois
gênios com aquela estatura. E é lógico também que os florentinos ficaram
eletrizados com a expectativa de qual dos dois iria realizar a melhor
pintura épica.
Florença e o mundo jamais ficaram sabendo qual dos dois venceria o
desafio. É que ambos interromperam seus trabalhos no Palazzo della
Signoria entre 1505 e 1506. Leonardo, porque estava comprometido com
encomendas inacabadas em Milão. (Quase criou um entrave diplomático
entre os governos das duas cidades.) Michelangelo, porque precisou
atender aos pedidos caprichosos do papa Júlio II, em Roma, e deixou
preparados apenas os desenhos de sua Batalha de Cascina. Aparentemente,
os motivos da desistência de ambos foram alheios à competição. Mas quem
garante que não tenham também, de alguma forma, em algum momento,
amarelado? Pois é, caro leitor. Atrás dos gênios e dos mitos existem
homens – que amam, invejam, cometem deslizes e sentem medo e raiva como
qualquer um de nós, pobres mortais.
Pode-se dizer que a rivalidade entre Michelangelo e Leonardo era
inevitável. E não apenas pela semelhança de suas grandezas artísticas.
Eles também não combinavam em quase nada: as diferenças se revelavam na
aparência, nos traços de personalidade, nos caminhos artísticos, nas
buscas estéticas que escolhiam e até mesmo nas influências filosóficas
que haviam recebido. Simpatizante da teoria neoplatônica, bastante em
voga naquela época, Michelangelo buscava tirar do mármore formas
idealizadas, bem de acordo com a subjetividade do filósofo grego Platão.
Leonardo, ao contrário, se identificava muito mais com a visão objetiva
de Aristóteles, que valorizava a investigação científica e a observação
da natureza.
O Michelangelo, 23 anos mais jovem que o rival, era irreverente,
impetuoso e, não raro, malcriado. Sua intempestividade lhe rendeu brigas
homéricas com os Médicis, a família florentina que patrocinava grande
parte dos artistas da época. Discordava daqueles que viam em Leonardo um
gênio. Mas, num cantinho qualquer do seu ateliê, Michelangelo se via na
obrigação de estudar as experimentações de seu grande desafeto, por ele
ter sido precursor de uma série de inovações técnicas – como o
“claro/escuro”, o jogo de sombra e luz. “Michelangelo nutria por
Leonardo um misto de inveja, discordância e admiração velada”, diz Maria
Elisa de Oliveira Cezaretti, professora de História da Arte na
Faculdade Belas Artes, de São Paulo.
Leonardo chamava a atenção, principalmente por sua excepcional beleza
e seu porte físico. Estava acostumado a usar túnicas coloridas, em
geral cor-de-rosa, que iam até os joelhos – um pouco curtas para os
padrões da época, é verdade, mas sempre na moda. Deixava que a longa e
encaracolada barba chegasse à metade do peito. E era festeiro: baladas
eram com ele mesmo. “Leonardo participava de festas na corte, gostava de
música, era bastante animado”, diz o artista plástico Percival
Tirapeli, professor da Unesp. Foi graças a esse jeito que tinha para
lidar com as pessoas, aliado a seu enorme talento, que ele conseguiu
driblar a má-sorte de ter sido filho bastardo naquela época. (Na Itália
renascentista, quem carregava tal rótulo era rechaçado pela sociedade.)
Leonardo nasceu em Vinci, um bucólico vilarejo distante um dia de
Florença, em 1452. Aos 13 anos, deixou sua cidade natal para trabalhar
no ateliê do mestre florentino Andrea Del Verrocchio, artista conhecido
por ser um professor inspirado, onde teve o primeiro contato com as
artes e com a filosofia. O jornalista britânico Michael White, autor da
biografia Leonardo: The First Scientist (Leonardo: O Primeiro
Cientista), recém-lançada nos Estados Unidos e ainda inédita no Brasil,
afirma que Leonardo, um típico garoto do interior, se transformou num
dândi graças ao burburinho de Florença. A cidade era o berço de toda a
agitação cultural que marcou a Renascença, nos séculos XV e XVI, e se
transformou no ambiente ideal para os artistas. “Eles gozavam de um
status social diferente. Eram mais do que artesãos, tinham autonomia
sobre a obra”, diz o italiano Luciano Migliaccio, professor da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da USP e também da Escola do Museu de Arte
de São Paulo, o Masp.
Leonardo não era um simples pintor. Era, na verdade, um cientista com
criatividade e sensibilidade extraordinárias. Transitava dos desenhos e
pinturas aos grandes projetos de engenharia e de arquitetura com
extrema facilidade. Quando encasquetava com um problema qualquer, parava
tudo o que estava fazendo – gravuras, quadros, projetos – e ia escrever
um tratado sobre a questão. Era apaixonado pela natureza. E a tomava
como ponto de partida em grande parte de seus estudos e projetos. Um
deles, o estudo da anatomia humana, o levou a dissecar cadáveres e a ser
perseguido por isso. “Deixo a alma aos monges”, costumava dizer.
“Leonardo antecipou diversas idéias que foram posteriormente confirmadas
pela ciência: algumas leis da dinâmica dos líquidos, a relação entre a
Lua e as marés, a circulação do sangue”, diz Migliaccio.
Michelangelo, ao contrário, era artista em tempo integral. Apesar de
se considerar antes de tudo um escultor, também produziu afrescos e
realizou experimentos com cores que influenciaram dezenas e dezenas de
outros artistas. Nasceu em 1475, em Caprese, no seio de uma família de
classe média alta já um tanto decadente. Em decorrência disso, carregava
consigo o anseio de nobreza. Primeiro estudou no ateliê do mestre
Domenico Ghirlandaio, um pintor famoso por seus murais, nos idos de
1489. Depois, passou a trabalhar para Lorenzo de Médici, talvez o mais
destacado mecenas do clã dos Médici. O artista e historiador italiano
Giorgio Vasari (1511-1574), contemporâneo de Michelangelo e Leonardo, e
autor de Vidas dos Pintores, Escultores e Arquitetos, confirma que
Michelangelo tinha um temperamento difícil, irascível e briguento. Os
relatos dão conta de um sujeito melancólico, que vivia atormentado por
conflitos interiores.
Enquanto o vaidoso Leonardo encantava a sociedade intelectual abrindo
seu ateliê àqueles que queriam acompanhar seu processo de criação e
fazendo do ato de pintar uma verdadeira performance, Michelangelo
esculpia sozinho, obstinado, tendo como única companhia a poeira do
mármore. Precursor dos workaholics, era capaz de trabalhar até 20 horas
por dia e dormir no chão do seu ateliê. Baixinho e um pouco curvado,
estava bem longe de ser um homem bonito. Justo ele que, em todas as suas
obras, buscava o belo, o sublime, a representação perfeita de idéias
perfeitas. Para aumentar a distância entre ele e suas obras, um
incidente o marcou – literalmente – para toda a vida. “Numa briga, na
adolescência, Michelangelo levou um soco que lhe quebrou o nariz”, diz a
historiadora Fernanda Mendonça Pitta, doutoranda da Universidade
Estadual de Campinas. Mas isso não o impediu de se retratar em algumas
obras, como na segunda de suas três Pietà, em que ele aparece como
Nicodemos, ajudando Maria a segurar Cristo morto.
Michelangelo também deixou seus escritos. Não milhares de páginas de
anotações, esboços e tratados como Leonardo. Mas cerca de 300 poemas,
entre sonetos, canções e fragmentos. Muitos deles dedicados ao amigo
Tommaso Cavalieri, por quem Michelangelo cultivava uma paixão platônica.
“Amor, se tu se’ dio,/ non puo’ ciò che tu vuoi?/ Deh fa’ per me, se
puoi,/ quel ch’i’ fare’ per te, s’Amor fuss’io...”, diz um dos versos.
(“Amor, se tu és deus,/ não podes o que desejas?/ Bem faz por mim, se
podes,/ como eu faria por ti, se o amor fosse eu...”). “Ele buscou na
arte a sublimação dos seus conflitos”, afirma a historiadora Liana Ruth
Bergstein Rosemberg, professora da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Uerj. (Diferente de Leonardo, que teria imprimido
conscientemente às suas pinturas um certo efeito psicológico.)
Por causa das constantes viagens a trabalho – para Roma, Milão,
Bolonha e para países vizinhos –, decorrência das encomendas dos
mecenas, é provável que os dois gênios renascentistas não tenham passado
muito tempo juntos em Florença. Se essa relativa distância ajudou ou
atrapalhou uma possível aproximação, ninguém pode dizer. Outra coisa
sobre a qual é difícil dar certeza é sobre o quanto as diferenças entre
ambos – e também o que tinham em comum – colaboraram para a inimizade.
Um dos únicos a especular sobre o assunto foi Sigmund Freud. O pai da
psicanálise encontrou algumas semelhanças entre ambos: de um lado, os
dois tinham dificuldade em lidar com a figura da mãe, ausente em suas
infâncias. De outro, os dois eram homossexuais – Leonardo mais
bem-resolvido, Michelangelo totalmente enrustido. Essas questões,
levantadas por Freud, só ele mesmo explica – a maioria dos historiadores
da arte não considera esses aspectos nas suas análises.
Para Vasari, porém, a inimizade entre ambos deveu-se a um evento
particular: o único encontro casual entre os dois nas ruas de Florença
de que se tem notícia. Leonardo passeava com um amigo perto do Palazzo
Spini, onde um grupo de homens discutia uma passagem do Inferno, de
Dante Aligheri, obra em evidência na época. (Florença vivia um momento
de glória: era, ao mesmo tempo, o lar de Michelangelo, Leonardo, Dante,
Rafael, Botticelli e vários outros artistas.) À determinada altura, os
homens pediram que Leonardo lhes explicasse alguns trechos do Inferno,
bem na hora em que Michelangelo passava pelo local. Leonardo, sabendo da
admiração do jovem artista por Dante, disse então: “Michelangelo vai
explicar para vocês”. Pensando que estava sendo ridicularizado,
Michelangelo enraiveceu e insultou Leonardo. Criticou a sua obra
inacabada mais famosa, o monumental cavalo de bronze encomendado por
Ludovico Sforza, duque de Milão: “Explique-se você, que fez um modelo de
cavalo que jamais poderia terminar!” Atingido no calo, já em casa,
Leonardo viveu um momento de grande baixa autoestima. Escreveu num de
seus inúmeros cadernos de anotações: “Conte-me, conte-me se alguma vez
eu fiz alguma coisa...”, considerando que talvez nada do que fizera na
vida até então tivesse valido a pena.
Se Michelangelo também escrevia, Leonardo também tinha seus ímpetos.
“Há um episódio divertido que aparece em um dos seus blocos de notas”,
diz a historiadora Liana Rosemberg. Era um sábado santo e um padre fazia
a ronda da sua paróquia, abençoando as casas com água benta. Ao entrar
na sala do pintor, o padre espalhou água benta sobre algumas obras. “Por
que o senhor está molhando as minhas pinturas?”, perguntou Leonardo,
aborrecido. “Esse é o meu dever”, disse o padre, explicando que, segundo
a promessa divina, quem pratica o bem na Terra recebe o dobro no Céu.
Leonardo esperou o padre terminar a bênção e subiu para a janela da sua
casa. De lá, quando o padre saía, despejou uma bacia de água sobre sua
cabeça. “Eis o dobro que está vindo de cima em retribuição ao bem que o
senhor acabou de me fazer com a água benta, arruinando metade das minhas
pinturas.”
A rivalidade entre os dois artistas se manteve acesa, mas não se tem
registro de nenhum outro encontro posterior. Sabe-se que, quando foi a
Roma, no outono de 1513, uma das primeiras coisas que Leonardo fez foi
dar uma espiadinha nas pinturas da Capela Sistina, concluídas um ano
antes. Ele criticava o fato de Michelangelo retratar somente figuras
hercúleas, mesmo quando não tinham a ver com o contexto. Sabe-se também
que Leonardo participou da comissão que discutiu o lugar ideal para uma
das obras-primas de Michelangelo, o Davi, concluído em 1504. Ele
conhecia de antemão a fama do jovem escultor que encarou com sucesso o
enorme bloco de mármore abandonado havia 40 anos, com o qual nenhum
outro artista queria trabalhar.
E, mesmo honrando a fama de explosivo, Michelangelo tinha lá seus
momentos de bom humor. Na época em que finalizava a estátua de Davi,
recebeu a visita de um conhecido. O homem declarou ter gostado muito da
estátua, mas apontou um defeito: disse que o nariz estava um pouco
grosso. Michelangelo percebeu que, da posição em que o outro estava, era
impossível ver o nariz da estátua. Mesmo assim, para não decepcionar o
amigo, subiu no apoio e derrubou um pouco de pó de mármore da estátua. E
perguntou o que o outro achava da “mudança”. “Ah, ficou bem melhor”,
elogiou o homem.
O que parece razoável é pensar que a existência da rivalidade só fez o
trabalho de Michelangelo e Leonardo crescer. “As obras deles se
tornaram atemporais – e esta é a marca dos gênios”, afirma Liana
Rosemberg. Que o digam a provocadora Mona Lisa (1506), enigmática como
Leonardo, e a última Pietà (1564) de Michelangelo, que transpira a
tempestade de emoções e o sofrimento de seu criador.
artigo adaptado de :http://super.abril.com.br/cultura/leonardo-vinci-michelangelo-eles-nao-se-bicavam-460383.shtml