Revista Paulista de Pediatria
versão ISSN 0103-0582
Rev. paul. pediatr. vol.29 no.1 São Paulo jan./mar. 2011
doi: 10.1590/S0103-05822011000100019
RELATO DE CASO
Gaucher Disease - an underdiagnosed disorder
Camila Simões FerreiraI; Luis Roberto da SilvaII; Maria Bernadete J. AraújoIII; Roberta Kazan TannúsIV; William Luiz AoquiV
IEspecialista em Hematologia Pediátrica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); Ex-Residente em Pediatria na UFU, Uberlândia, MG, Brasil
IIMestre em Genética pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP); Geneticista do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFU, Uberlândia, MG, Brasil
IIIMestre em Clínica Médica pela UFU; Professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFU, Uberlândia, MG, Brasil
IVResidente em Clínica Médica na Faculdade de Medicina da UFU, Uberlândia, MG, Brasil
VResidente em Psiquiatria na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IIMestre em Genética pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP); Geneticista do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFU, Uberlândia, MG, Brasil
IIIMestre em Clínica Médica pela UFU; Professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFU, Uberlândia, MG, Brasil
IVResidente em Clínica Médica na Faculdade de Medicina da UFU, Uberlândia, MG, Brasil
VResidente em Psiquiatria na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: A doença de Gaucher é um erro inato do metabolismo, clinicamente heterogêneo, cujo prognóstico pode variar de acordo com o subtipo de apresentação.
DESCRIÇÃO DO CASO: Paciente de três anos e seis meses com história de anemia e esplenomegalia há dois anos. Ao exame físico, mostrava mucosas discretamente hipocoradas, sopro sistólico em focos mitral e tricúspide sem frêmito ou irradiação, esplenomegalia importante e hepatomegalia discreta. O hemograma evidenciou anemia normocítica e normocrômica e plaquetopenia discreta. Demais exames normais. Para investigar causas medulares de anemia foi realizado o mielograma, que constatou infiltração medular por células de Gaucher. O diagnóstico foi confirmado pela dosagem de beta-glicosidase ácida. O aconselhamento genético foi solicitado e a terapia de reposição com imiglucerase foi orientada.
COMENTÁRIOS: O caso foi o único documentado com o diagnóstico de doença de Gaucher no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, entre 1999 e 2008, que abrange uma população de aproximadamente 3 milhões de pessoas em 86 municípios, sugerindo haver subdiagnóstico desse erro inato. Ressalta-se a importância de ter em mente a doença de Gaucher como diagnóstico diferencial em pacientes com anemia crônica e esplenomegalia na infância.
DESCRIÇÃO DO CASO: Paciente de três anos e seis meses com história de anemia e esplenomegalia há dois anos. Ao exame físico, mostrava mucosas discretamente hipocoradas, sopro sistólico em focos mitral e tricúspide sem frêmito ou irradiação, esplenomegalia importante e hepatomegalia discreta. O hemograma evidenciou anemia normocítica e normocrômica e plaquetopenia discreta. Demais exames normais. Para investigar causas medulares de anemia foi realizado o mielograma, que constatou infiltração medular por células de Gaucher. O diagnóstico foi confirmado pela dosagem de beta-glicosidase ácida. O aconselhamento genético foi solicitado e a terapia de reposição com imiglucerase foi orientada.
COMENTÁRIOS: O caso foi o único documentado com o diagnóstico de doença de Gaucher no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, entre 1999 e 2008, que abrange uma população de aproximadamente 3 milhões de pessoas em 86 municípios, sugerindo haver subdiagnóstico desse erro inato. Ressalta-se a importância de ter em mente a doença de Gaucher como diagnóstico diferencial em pacientes com anemia crônica e esplenomegalia na infância.
Palavras-chave: doença de Gaucher; erros inatos do metabolismo; anemia; esplenomegalia; diagnóstico diferencial.
ABSTRACT
OBJECTIVE: Gaucher disease is an inborn error of metabolism, clinically heterogeneous, whose prognosis may vary according to the presentation subtype.
CASE DESCRIPTION: Patient at the age of three years and six months with a history of anemia and splenomegaly for the past two years. Physical examination showed: moderate paleness, systolic murmur in mitral and tricuspid areas without irradiation, significant splenomegaly and mild hepatomegaly. Hemogram presented normocytic and normochromic anemia and mild thrombocytopenia. To investigate bone marrow-related anemias, a myelogram was indicated and the results showed medullary infiltration by Gaucher cells. The diagnosis of the disease was confirmed by assay of acid beta-glucosidase. Genetic counseling was requested and imiglucerase therapy was started.
COMMENTS: This was the only documented case of Gaucher disease diagnosis in the General Hospital of Uberlândia Federal University, between 1999 and 2008, which assists a population of approximately 3 million people in 86 municipalities, indicating underdiagnosis of this inborn metabolic error. Thus, it is important to consider Gaucher disease as a differential diagnosis on patients with chronic anemia and splenomegaly during childhood.
CASE DESCRIPTION: Patient at the age of three years and six months with a history of anemia and splenomegaly for the past two years. Physical examination showed: moderate paleness, systolic murmur in mitral and tricuspid areas without irradiation, significant splenomegaly and mild hepatomegaly. Hemogram presented normocytic and normochromic anemia and mild thrombocytopenia. To investigate bone marrow-related anemias, a myelogram was indicated and the results showed medullary infiltration by Gaucher cells. The diagnosis of the disease was confirmed by assay of acid beta-glucosidase. Genetic counseling was requested and imiglucerase therapy was started.
COMMENTS: This was the only documented case of Gaucher disease diagnosis in the General Hospital of Uberlândia Federal University, between 1999 and 2008, which assists a population of approximately 3 million people in 86 municipalities, indicating underdiagnosis of this inborn metabolic error. Thus, it is important to consider Gaucher disease as a differential diagnosis on patients with chronic anemia and splenomegaly during childhood.
Key-words: Gaucher disease; metabolism, inborn errors; anemia; splenomegaly; differential diagnosis.
Introdução
A doença de Gaucher (DG), descrita pela primeira vez pelo médico francês Philippe Charles Ernest Gaucher, em 1882, é o erro inato do metabolismo de maior frequência no grupo das doenças de depósito lisossômico(1,2). Trata-se de uma doença autossômica recessiva, definida pela presença de dois alelos mutantes para o gene da beta-glicosidase ácida (BGA), uma hidrolase lisossômica localizada na região q21 do cromossomo(3). A deficiência de atividade dessa enzima leva ao acúmulo de grandes quantidades de glicocerebrosídeos - um glicolipídio - nos lisossomos das células de linhagem dos macrófagos, as chamadas células de Gaucher, que podem ser encontradas na medula óssea, fígado, baço e outros órgãos(3,4). Esse acúmulo perturba e inibe o funcionamento normal desses órgãos e tecidos, o que pode causar danos irreparáveis(4,5). Clinicamente heterogênea e classificada em três subtipos, seu prognóstico pode variar de benigno a extremamente grave, de acordo com o subtipo de apresentação(2,5). O diagnóstico de certeza da DG é estabelecido por meio da dosagem da atividade da BGA e seu tratamento por reposição enzimática específica(5).
O relato deste caso visa despertar a atenção do profissional médico para doenças relativamente raras e de interesse geral, sendo o único caso diagnosticado de DG no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), na faixa etária pediátrica, no período de 1999 a 2008.
Descrição do caso
Criança de três anos e seis meses, sexo masculino, branco, natural e procedente de Uberlândia, atendido no Ambulatório de Pediatria do Hospital de Clínicas da UFU em 2007, com história de anemia e esplenomegalia há dois anos e oito meses, episódios de icterícia intermitentes e edema facial matutino esporádico (sic).
A criança foi internada aos dez meses com quadro de pneumonia comunitária, e observou-se, nessa ocasião, anemia e esplenomegalia, investigadas posteriormente por diversos serviços médicos sem definição diagnóstica. Houve uso crônico de sulfato ferroso para tratamento da anemia, sem sucesso. O teste de triagem metabólica não revelou alterações. Havia história familiar de parentes de segundo grau com anemia de etiologia não definida e colelitíase, sendo os pais não consanguíneos.
Ao exame físico apresentava mucosas hipocoradas; sopro sistólico em focos mitral e tricúspide sem frêmito ou irradiação; baço palpável a 7cm do rebordo costal esquerdo de consistência endurecida; fígado palpável a 2cm do rebordo costal direito, de consistência fibroelástica, indolor à palpação; crescimento pôndero-estatural adequado para idade; e exame neurológico sem alterações. Exames laboratoriais evidenciaram anemia normocítica e normocrômica (Hemoglobina: 11,5g/dL; VCM: 77,9fL; HCM: 25,9pg) e plaquetopenia (106.000/mm3). Leucograma, reticulócitos, perfil do ferro, eletroforese de hemoglobina, Coombs direto, pesquisa de microesferócitos, curva de fragilidade osmótica, avaliação das funções hepática renal e tireoidiana sem alterações. Sorologias para toxoplasmose, HIV, hepatite e citomegalovírus negativas. A ultrassonografia abdominal confirmou esplenomegalia moderada.
Após esses exames foi realizado mielograma, que constatou infiltração medular por células compatíveis com a morfologia das células de Gaucher. O teste enzimático (dosagem de BGA) em leucócitos e em papel de filtro foi realizado, e o resultado confirmou o diagnóstico de DG. Após o diagnóstico, exames foram realizados para verificar acometimento sistêmico. As radiografias de tórax, coluna cervical, torácica e lombar foram normais. A avaliação neurológica não evidenciou alteração. O aconselhamento genético familiar e a terapia de reposição enzimática com imiglucerase foram solicitados, além de acompanhamento ambulatorial do paciente pela Pediatria, Neurologia e Hematologia.
Discussão
A DG é uma glucoesfingolipidose clinicamente heterogênea, progressiva e pertencente ao grupo das doenças lisossômicas de armazenamento, em que a deficiência da enzima glucocerebrosidase leva ao acúmulo de glucocerebrosídeo no interior dos lisossomas do sistema retículo-endotelial, principalmente no baço, fígado, medula óssea, sistema nervoso central, pulmão e gânglios linfáticos(2,4).
Se diagnosticada tardiamente e/ou não tratada, os pacientes apresentam risco de desenvolver danos significativos e complicações capazes de levar à morte(2,3). As manifestações clínicas dependem do grau de deficiência dessa enzima, existindo três tipos: DG tipo 1, a mais comum, representa mais de 90% de todos os casos de DG em crianças e adultos, com uma incidência de um para cada 40.000 a 60.000 nascidos vivos (NV), de progressão variável e mais frequente entre judeus Ashkenazi(4,6). A apresentação clínica típica dessa forma, denominada não-neuropática, é a hepatomegalia e a esplenomegalia, levando ao hiperesplenismo com anemia progressiva, trombocitopenia e leucopenia. O acúmulo de glicocerebrosídeos na medula óssea pode resultar em lesões líticas, fraturas patológicas, dor óssea crônica e osteonecrose. A DG tipo 2, ou forma neuropática aguda, afeta lactentes com 4 e 5 meses de idade, comprometendo cérebro, baço, fígado e pulmão. Apresenta quadro neurológico grave, com múltiplas crises epilépticas, hipertonia, apneia e progressivo retardo mental, com morte nos primeiros dois anos de vida devido ao envolvimento pulmonar. Sua incidência é de um para cada 100.000 NV, com distribuição pan-étnica. Finalmente, a DG tipo 3, ou forma neuropática crônica, afeta crianças e adolescentes com quadro neurológico de menor gravidade que o tipo 2 e com sobrevida até a segunda ou terceira década de vida. Tem uma incidência de um para cada 50.000 a 100.000 NV(7-10). A principal diferença entre os três fenótipos é a presença e a progressão de complicações neurológicas, além dos sintomas que podem aparecer na infância(7,8). O diagnóstico definitivo é a dosagem enzimática da atividade da BGA nos leucócitos ou em fibroblastos da pele; a análise molecular serve como verificação complementar do diagnóstico(11,12).
Em contraste com outras doenças genéticas, para a DG tipo 1 existe tratamento altamente efetivo, por meio da terapia de reposição enzimática (TRE) com imiglucerase. Antes de a TRE ser disponibilizada, a anemia e a trombocitopenia eram tratadas com esplenectomia. A imiglucerase é a forma modificada por técnica de DNA recombinante da glicocerebrosidase, e sua reposição tem mudado significativamente a evolução da DG tipo 1, sendo que a maioria dos pacientes tratados apresenta reversão dos sintomas ou bloqueio da doença. A administração do fármaco deve ser realizada em ambiente hospitalar, sob supervisão médica, por infusão intravenosa de 30U/kg a cada 15 dias(12-15).
Este paciente foi encaminhado ao ambulatório de Pediatria do UFU para investigação de um quadro de anemia normocítica e normocrômica, esplenomegalia progressiva e hepatomegalia discreta, com crescimento pôndero-estatural e desenvolvimento neuropsicomotor adequados. Dentre os possíveis diagnósticos para o quadro hematológico, a anemia ferropriva, principal causa de anemia carencial na infância, foi excluída pelo resultado de testes laboratoriais, além da refratariedade ao tratamento com sulfato ferroso(16). Foram abordados outros diagnósticos que se manifestam com anemia e esplenomegalia na infância, como anemias hemolíticas, dentre elas, a esferocitose hereditária e as anemias autoimunes, não comprovadas pelos testes laboratoriais.
Devido ao bom estado geral do paciente e à evolução crônica do quadro, além da ausência de febre ou outras manifestações clínicas que sugerissem infecção, descartou-se a anemia por causas infecciosas e/ou parasitárias, com posterior confirmação laboratorial. Quadros hematológicos relacionados à hepatopatia crônica foram excluídos, devido à ausência de sinais de congestão, icterícia e testes de função hepática normais. Foram também investigadas anemias por endocrinopatias, como hipotireoidismo, com resultados negativos. Por fim, para investigar uma doença de depósito ou infiltração medular, foi realizado um mielograma, cujo achado levantou a hipótese de DG, confirmada por meio de dosagem enzimática. A anemia, nesse caso, é explicada pelo sequestro esplênico associado à infiltração de células de Gaucher na medula óssea e o deslocamento de elementos hematopoiéticos por essas células, o que produz anomalias hematológicas clínicas e/ou laboratoriais(9,11,13). O paciente em questão se enquadra no tipo 1 de melhor prognóstico, e também mais comum, conforme dados da literatura, já que apresenta anemia e plaquetopenia discretas, associadas à esplenomegalia, sem acometimento neurológico, pulmonar ou ósseo(9,17-19). Contudo, apesar de ser o subtipo de melhor evolução clínica, a carência de sintomas clássicos na DG tipo 1 leva ao subdiagnóstico frequente(9,20,21). A partir desse caso, ressalta-se a importância de considerar a DG como uma das possibilidades diagnósticas em quadros clínicos que cursam com anemia crônica associada à esplenomegalia na infância, evitando, assim, o diagnóstico e tratamento tardios e a consequente progressão da doença(21,22).
Uma revisão de prontuários da população infantil do UFU foi realizada no período de 1999 a 2008, e observou-se que o caso descrito foi o único documentado com o diagnóstico de DG na instituição. O UFU é um centro de referência para média e alta complexidade, abrangendo uma população de aproximadamente 3 milhões de pessoas em 86 municípios do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba. Os dados da literatura apontam a DG como rara, com prevalência de cerca de um para cada 50.000 NV. Contudo, pode-se inferir que a dificuldade de reconhecimento do quadro pelo médico está levando a um subdiagnóstico da doença. Outro fator que poderia contribuir para a baixa prevalência da DG seria a sua heterogeneidade, uma vez que as manifestações abrangem um leque de quadros clínicos na faixa etária pediátrica(14,15,22).
Desse modo, apesar de a DG ser uma condição infrequente, sua importância maior reside na capacidade de apresentar um quadro clínico muito semelhante ao de doenças de elevada prevalência, com necessidade, porém, de um diagnóstico precoce e específico, além de acompanhamento multidisciplinar para se obter a resolução clínica.
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Endereço para correspondência:
Roberta Kazan Tannús
Avenida Getúlio Vargas, 1.145 - Centro
CEP 38400-299 - Uberlândia/MG
E-mail: robertakazan@yahoo.com.br
Roberta Kazan Tannús
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CEP 38400-299 - Uberlândia/MG
E-mail: robertakazan@yahoo.com.br
Recebido em: 25/9/2009
Aprovado em: 26/4/2010
Conflito de interesse: nada a declarar
Aprovado em: 26/4/2010
Conflito de interesse: nada a declarar
Instituição: Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil
fonte:
citação:
Ferreira Camila Simões, Silva Luis Roberto da, Araújo Maria Bernadete J., Tannús Roberta Kazan, Aoqui William Luiz. Doença de Gaucher: uma desordem subdiagnosticada. Rev. paul. pediatr. [periódico na Internet]. 2011 Mar [citado 2011 Abr 21] ; 29(1): 122-125. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-05822011000100019&lng=pt. doi: 10.1590/S0103-05822011000100019.