
A discussão aqui se limita ao fato de que a criança, na época com 13 anos de idade, não tinha como se posicionar a respeito desse problema, assim como de outros relativos à sua idade, sendo os pais, os responsáveis por decidir por ela. Entretanto, dado que a decisão dizia respeito diretamente a sua vida e tendo ela direito de viver, poderia o Estado ir contra uma decisão 'parental' que atentasse contra a existência da menina. As TJ sempre invocam legislações de direitos humanos para justificar a recusa dos pais em transfundir hemoderivados a crianças. Essa história é bem antiga. Uma longa lista de eventos na luta por direitos humanos começou com a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e teve, como capítulo importante para a medicina, a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, conhecida como Consenso de Oviedo, em especial para Europa[1]. Houve, nesse caso, também a interferência de um médico que, partidário da seita, segundo consta nos autos, pressionou a equipe médica que a assistia e que, por essa razão, está sendo processado também. 'Cortes por todo o mundo ocidental reconhecem os direitos dos pais, mas esses direitos não são absolutos. Os direitos dos pais em criar suas crianças são identificados como o dever de assegurar sua saúde, segurança e bem-estar. Os pais não podem tomar decisões que possam permanentemente colocar em risco ou comprometer sua saúde. Se essa recusa resultar em sofrimento da criança, os pais podem ser incriminados. Entretanto, os processos raramente ocorrem.' A crença é livre. Agir, ou deixar de agir, tendo como único guia uma crença não reconhecida como corpo de conhecimento técnico utilizável na prática médica, não.
O estudo abaixo [2] verificou a legislação de países com língua inglesa quanto a recusa da transfusão de hemoderivados à criança pelos pais legais. Nos EUA, temos as seguintes conclusões:
1. Os interesses da criança e do Estado superam o de uma recusa de tratamento médico pelos pais.
2. Os direitos dos pais não asseguram direitos sobre a vida e a morte de suas crianças.
3. Os pais não têm direitos absolutos sobre a recusa de tratamento médico sobre suas crianças baseados em suas crenças religiosas.
No Reino Unido, a legislação para esse tipo de problema, como quase tudo lá, foi estabelecida no ano de 1875 e permanece inalterada: pais que falham em obter tratamento médico adequado para suas crianças estão sujeitos às penas da lei, mesmo se essa falha está baseada em religião. Na Austrália, a prerrogativa é do médico e nenhuma interferência deve ser aceita quando se tratar de uma criança.
No Brasil, um parecer do Conselho Federal de Medicina de 1980 estabelece que: Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta: 1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis. 2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.
Nesse caso específico, eu achei correto o encaminhamento dos pais a júri popular. Que a sociedade julgue esse tipo de decisão. Me pareceu especialmente perfeita a colocação do juiz do caso Prince vs Massachusetts, EUA,1944 [3]
'Pais estão livres para tornar-se mártires. Mas isso não significa que eles podem, em circunstâncias idênticas, tornar mártires suas próprias crianças'.
[1] Sr. Avelino Retamales, Dr. Gonzalo Cardemil. Rev Méd Chile 2009; 137: 1388-1394.
[2] Woolley, S. (2005). Children of Jehovah's Witnesses and adolescent Jehovah's Witnesses: what are their rights? Archives of Disease in Childhood, 90 (7), 715-719 DOI: 10.1136/adc.2004.067843
[3] Prince v Massachusetts (1944) 321 US 158.
